Em uma noite quente há alguns anos, Rômulo me explicou, tateando em busca das palavras, o conceito. Não estou nem um pouco certo de onde ele tirou essa ideia, mas ela me intriga desde então.

Imagino um copo da água. Esse copo está colocado de baixo de uma torneira, que está quase fechada mas pinga. Em passo lento e errático, caem gotas. Não sei por que, mas a maioria delas se esvaí, se desfazem conforme atravessam o ar até o fundo do copo. São pouquíssimas gotas que continuam seu caminho natural sem serem interrompidas(?). O copo se enche de uma maneira muito distinta, porém - demora anos, décadas, milênios para tal.

Percebe-se que, conforme a água se acumula, as gotas parecem ter menos volume, como se elas diminuíssem de tamanho à medida que a água se aproximaa da borda do copo; fracionam-se, tornando o processo cada vez mais lento. Chega o ponto que apenas mais uma única gota da água transbordaria o copo.

Mas parece que as gotas agora atingiram uma proporção infinitesimal. O copo nunca chegaria a transbordar, indiferente à pior das tormentas.
Pois o que aconteceria se pudesse ele ser transbordado? Atingira como que um ponto de jamais retornar, um pivô irrevogável. A água e o copo nunca mais seriam os mesmos, pois o copo deixou de assumir função de reservatório, deixou de agir como uma barreira, como uma barragem à água que se acumula. Haverá água tanto dentro quanto fora do copo.

Admito que minha narração não faz lá desse fenômeno digno de muito interesse.

Vocês ficariam infinitamente mais entretidos se estivessem escutando Rômulo em pessoa contar essa história, estou certo. Rômulo diz que o copo e a água representam a consciência de um homem e o explica muito bem.

Faço minha própria leitura das ideias dele - devo estar equivocado.

O copo vazio, penso eu, representa a forma de uma consciência pura. Deus me livre de associar aqui pureza à moralidade ou retidão - entendo puro como algo intocado e virgem, inexplorado até.

As gotas de água (somente às gotas), podemos associar diversos adjetivos: a experiência, a imaginação, o sensível, o racional.

Algo que é facilmente ignorado se não examinado o suficiente é o ar que já se encontra dentro do copo. Isso quer dizer que nem uma consciência é vazia do princípio.

Percebe que “são pouquíssimas gotas que continuam seu caminho natural sem serem interrompidas”. A maioria delas se desfaz - assim como nossas experiências, quase sempre, carecem de significado (atribuído).

Quero dizer que só chegam ao fundo do copo as gotas que, por alguma razão estranha, atingem alguma significância consciente. Para nós, a experiência de viver é em grande parte abstraída, perdida no labirinto da memória. Ignora-se o possível significado das coisas, mas apenas se vê sua forma.

São poucos os momentos que chegam a fazer sentido e se enxerga com claridez.

Conforme se encontra a consciência com experiência, forma-se um acúmulo. O acúmulo representa nossas experiências concretizadas, que fazem sentido (mesmo que não as entendamos).

Percebe-se que conforme maior o acúmulo, mais difícil de o incrementar. É marginal negativo.

Sendo assim, para uma criança, o sorriso de sua mãe é parte significativa do acumulado de sua existência; essa criança, com consciência adulta, ainda atribui àquele momento significância enorme (porém agora diluída, perdida entre tantas outras, o primeiro amor, as decepções, as cinzas de um cigarro).

Mas o mesmo sorriso de sua mãe, agora envelhecida, não terá o mesmo efeito sobre ela.

Incrementar a consciência se torna extremamente dificultoso. Imagino (apenas imagino) que, falando de um homem, seu acúmulo é uma medida proporcional à sua sabedoria.

O ponto de transbordar, em si, merece atenção própria. Rômulo me disse, se não estou enganado, que aguardamos apenas por aquele momento, o único momento em que a última gota atingirá o copo da água, em que se tem consciência da inefabilidade, o ponto de jamais retorno, que não poderíamos jamais nos escusar, que o acúmulo toma espaço maior que a própria consciência em si.

Não posso imaginar as implicações de tal conceito em palavras, nem ele, portanto a metáfora se torna extremamente útil.

Em que implicaria o transbordar de uma consciência? Me vêm em mente apenas conceitos fugazes como nirvana, iluminação e entendimento maior.

São coisas aparentemente inatingíveis.

De qualquer forma, se transborda a consciência. Esse seria o ponto de jamais retorno. A mente que atingisse tal condição jamais poderia voltar a ser como era antes, jamais poderia conter menos acúmulo, menos experiência significante que houvera outrora.

Hoje, eu penso que seria necessário um esforço incessante e excruciante para manter tal nível de consciência. Acredito que Rômulo tende a concordar comigo. O que pensa, meu velho?

Essa divagação foi escrita ao som de Les doigts de l’homme, albúm homônimo.

Dicionário, ou termos notáveis

consciência: Consciência é a representação estruturada de nossas experiências. Experimentamos, através do mundo sensível e inteligível. A consciência é nossa forma de entender e lidar com aquilo que por nós é vivenciado.

inexplorado: Ao inexplorado associa-se a idéia que há algo que falta, que há algo restante a ser descoberto - carrega conotação de que alguma ação deve ser tomada para o deixar de ser. Ao associar o explorador àquela figura quase mítica, viril, o inexplorado se torna uma condição (passada, ao menos) sine qua non de sua existência - apenas o inexplorado dá sentido para si.

significado: Significado é uma representação mental cuja gravidade se é sentida. Significado se atribui à algo, estando ou não consciente de o estar fazendo. Sendo assim, quando algo é significante, independente de seu motivo, tal coisa é importante para o observador.

significância consciente: Quando se escolhe atribuir significado à algo de forma consciente. Utilizando dos conceitos acima, a significância consciente seria definida como a representação mental estruturada de uma experiência cuja gravidade se é sentida.