Me surgiu um dia uma ideia interessante: será que seria possível escrever um conto palíndromo? Seria possível ler ele tanto em ordem normal, quanto de trás para  frente, sem que haja alteração significativa no entendimento? Então o escrevi. Não ficou muito bom. É mais uma brincadeira que  qualquer outra coisa, e não acho que tenham muito valor se não como  experimento (deixei de lado a qualidade da prosa para evidenciar a  estrutura da escrita.) Fica aqui outro questionamento: será possível escrever uma novela ou um  romance palíndromo? Em que a ordem de leitura dos capítulos não  prejudica o entendimento? Seria um trabalho bastante árduo, mas  interessante. (Lembra bastante Cortázar)

PALÍNDROMO ROTINEIRO

Sonha com os ratos que moram no forro. Perde minutos em estado de  semi-adormecimento inconsequente. Percebe que vai se atrasar. Corre,  coloca as roupas apropriadas, engole alguma coisa da geladeira. Abre a  porta do carro. Liga, engata, acelera, ultrapassa, buzina, acelera,  ultrapassa, buzina, freia. Acelera, xinga. Pensa nos ratos, sei lá por  que, acelera, freia, ultrapassa, chega. Abre a porta do carro. Passa  pela portaria. Oi, sim, foi mal pelo atraso. Toma mais café. Pensa no  prazo. Abre o e-mail. Trabalha, Organiza, lista, reordena, abre  protocolo, abre chamado, lista, avisa o Fred, abre protocolo novo,  atende o telefone, sim, vou te transferir, abre o e-mail, procrastina,  disfarça, lista, categoriza, procrastina, procrastina. Disfarça. Pensa  no prazo. Organiza, lista, reordena, abre protocolo, fecha chamada,  reordena, classifica, escreve, lê os emails, responde os emails, meio  dia. Pega o elevador, Boa Tarde. Anda 5 quadras. Entra no restaurante,  vê ela, fica feliz, almoça, conversa com ela, Ih, tá na hora de eu ir.  Anda 5 quadras. Pega o elevador, Boa Tarde, tudo certo? Acorda o  computador. Espera. Toma mais café. Pensa no prazo. Abre o e-mail.  Trabalha, Organiza, lista, reordena, abre protocolo, abre chamado,  lista, avisa o Fred, abre protocolo novo, atende o telefone, sim, vou te  transferir, abre o e-mail, procrastina, disfarça, lista, categoriza,  procrastina, procrastina. Disfarça. Pensa no prazo. Organiza, lista,  reordena, abre protocolo, fecha chamada, reordena, classifica, escreve,  lê os emails, responde os emails, seis horas. Ei, pode deixar Fred, não  vou atrasar amanhã. Passa pela portaria. Abre a porta do carro. Liga,  engata, acelera, ultrapassa, buzina, acelera, ultrapassa, buzina, freia.  Acelera, xinga. Pensa nos ratos, sei lá por que, acelera, freia,  ultrapassa, chega. Abre a porta do carro Corre, coloca as roupas  apropriadas, engole alguma coisa da geladeira. Percebe que vai se  atrasar. Perde minutos em estado de semi-adormecimento inconsequente.  Sonha com os ratos que moram no forro.

Ao contrário:

Sonha com os ratos que moram no forro. Perde minutos em estado de  semi-adormecimento inconsequente. Percebe que vai se atrasar. Corre,  coloca as roupas apropriadas, engole alguma coisa da geladeira. Abre a  porta do carro Pensa nos ratos, sei lá por que, acelera, freia,  ultrapassa, chega. Liga, engata, acelera, ultrapassa, buzina, acelera,  ultrapassa, buzina, freia. Acelera, xinga. Abre a porta do carro. Passa  pela portaria. Ei, pode deixar Fred, não vou atrasar amanhã. Organiza,  lista, reordena, abre protocolo, fecha chamada, reordena, classifica,  escreve, lê os emails, responde os emails, seis horas. Pensa no prazo.  Disfarça. Abre o e-mail. Trabalha, Organiza, lista, reordena, abre  protocolo, abre chamado, lista, avisa o Fred, abre protocolo novo,  atende o telefone, sim, vou te transferir, abre o e-mail, procrastina,  disfarça, lista, categoriza, procrastina, procrastina. Pensa no prazo.  Toma mais café. Espera. Acorda o computador. Pega o elevador, Boa Tarde,  tudo certo? Anda 5 quadras. Entra no restaurante, vê ela, fica feliz,  almoça, conversa com ela, Ih, tá na hora de eu ir. Anda 5 quadras. Pega o  elevador, Boa Tarde. Organiza, lista, reordena, abre protocolo, fecha  chamada, reordena, classifica, escreve, lê os emails, responde os  emails, meio dia. Pensa no prazo. Trabalha, Organiza, lista, reordena,  abre protocolo, abre chamado, lista, avisa o Fred, abre protocolo novo,  atende o telefone, sim, vou te transferir, abre o e-mail, procrastina,  disfarça, lista, categoriza, procrastina, procrastina. Disfarça. Abre o  e-mail. Pensa no prazo. Toma mais café. Oi, sim, foi mal pelo atraso.  Passa pela portaria. Abre a porta do carro. Pensa nos ratos, sei lá por  que, acelera, freia, ultrapassa, chega. Liga, engata, acelera,  ultrapassa, buzina, acelera, ultrapassa, buzina, freia. Acelera, xinga.  Abre a porta do carro. Corre, coloca as roupas apropriadas, engole  alguma coisa da geladeira. Percebe que vai se atrasar. Perde minutos em  estado de semi-adormecimento inconsequente. Sonha com os ratos que moram  no forro.

Observações:

Todas as situações têm de ser vagas o suficiente para não denotar  tempo. Exemplo: Como o conto é uma rotina, “coloca o pijama” não pode  ser a primeira coisa que se faz ao acordar. Já “coloca roupas  apropriadas” pode ser tanto um terno quanto um pijama.

Eu roubei. Se você realmente levar o conceito de palíndromo a sério,  as vírgulas não podiam existir, ou, se existissem, deveriam trocar de  lugar junto da frase. Se alguém conseguir tecer um conto dessa maneira,  parabéns.

Só consegui pensar em como utilizar isso em um conto que descreve uma  rotina, uma repetição sem fim, um loop. Não vejo como poderia ser feito  de outra forma - talvez, se expressasse sentido diferente dependendo da  direção de leitura, fosse possível usar outra estrutura.